terça-feira, 2 de agosto de 2011

A Senhora Almerinda (uma história que vivi nos anos 40)

A Senhora Almerinda

A senhora Almerinda Sardinheira era uma mulher de trinta anos. Era a sardinheira da aldeia, vendia sardinhas e um ou outro peixe, não muitos, porque a clientela nada comprava a não ser sardinhas, chicharros e pescadinhas, porque não tinha dinheiro.
E portanto, não vendia mais do que isso. E lá ia diariamente a Braga, distando 14 quilómetros da aldeia, buscar o peixe para depois o vender de casa em casa.
Tinha cinco filhos naquela altura. Não me lembro se depois veio a ter mais.
A senhora Almerinda era uma figura bonita, sem rugas, apesar dos filhos que já tivera, alta e com corpo esculpido, o que se podia dizer uma mulher bonita. E lá ia de casa em casa, vender o peixe, a maior parte das vezes, a sardinha, porque era o peixe mais barato e o mais preferido de todas as pessoas.
Ora, o filho mais novo da senhora Almerinda, de três anos morreu. Morreu com uma gastroenterite. Naquela altura ainda se morria de gastroenterite...
E já se está a ver porquê. A mãe praticamente só estava em casa à noite e os filhos ficavam entregues uns aos outros durante o dia. E, portanto, sem grandes cuidados, porque crianças ou adolescentes não têm os mesmos cuidados que os adultos quando uma criança está doente. Frutos do tempo ou daquela época.
Morreu o filho mais novo da senhora Almerinda Sardinheira. E a senhora Almerinda não se conseguiu libertar do destino que lhe era imposto pelo lugar onde morava.
Talvez a senhora Almerinda tenha sido acometida e vencida por uma solidão enorme, movendo-se com gestos lentos e desajeitados pelo desgosto da morte daquele seu filho. E talvez se tenha questionado, perguntando a Deus, donde vinha tudo aquilo, porquê tudo aquilo, porque é que meu filho morreu… mas sem nunca ir ao fundo da questão, porque o seu trabalho exigia que saísse de manhã e voltasse à noite, para ganhar o sustento para os filhos. E futuramente? Talvez com aquele desgosto, a sua vida diária, nada lhe traria para a entusiasmar. Era como se perdesse tudo. Mas nada mudaria. Continuaria a saír de casa de manhã e a entrar à noite, deixando os filhos entregues à sua sorte.
Não havia água no lugar onde morava e como era costume naquela época, lavar os mortos, a senhora Almerinda com falta de água lavou o filho com vinho, não sei se branco se tinto, mas lavou-o com vinho, para que fosse limpo para a eternidade e para a ressurreição.
E ainda hoje recordo tudo, porque no funeral, fui uma das crianças que carreguei o caixão do filho da senhora Almerinda desde a sua casa até à igreja. Depois de toda a cerimónia do funeral quiseram dar-me um pão, o que era costume, e eu recusei, porque não quis comer à custa do desgosto ou da desgraça daqueles que sofriam, por terem perdido um ente querido. E fiquei em silêncio durante horas.

(A. Bacelar Antunes, Lembranças do Passado, 2001)

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