A NOTÍCIA DUM CANCRO
Era sempre à quarta-feira o meu dia mais difícil de trabalho.
Nesse dia, as cirurgias tinham acabado às 23 horas. Era Janeiro e à saída do Hospital um vento frio veio ter comigo, sem me pedir licença, antes de eu entrar no carro, como se me trouxesse alguma notícia, que necessitava saber. É estranho, mas algo me dizia que alguma coisa não estava bem. O ar era frio e húmido como se quisesse congelar-me, fazer de mim uma estátua de gelo que, depois quando aparecesse o calor, se desfaria e eu deixaria de ser eu próprio.
Hoje pergunto-me:
- Porque me pareceu aquele dia tão diferente das outras quartas-feiras?
- Porque tinha aquele silêncio da noite penetrado no meu corpo, sob a forma de vento frio, nesse mês de Janeiro que se sabe ser sempre frio, frio húmido que nos escorraça para dentro de casa procurando abrigo e agasalho que nos console e nos aqueça o corpo e a alma, se alguém tivermos que nos possa fazer isso.
Quantas vezes fugimos do frio e permanecemos enregelados, por não termos ninguém que nos abrace e, mesmo acompanhados, continuamos a sentir o frio desse tempo frio, e mais o frio da alma por sentirmos frio, como se houvesse um frio mais frio, sem termos manta que nos agasalhe e dê o consolo de um abraço, ou do enrolar-se em nós, apertando-nos bem contra o seu peito, e beijando-nos como se chegássemos de longe e de muitos anos de ausência.
Algo me alterava o meu ser, me gerava uma emoção esquisita que não, não posso ainda hoje descrever. Recordo o que sentia, que sentimento era aquele, que vinha ter comigo, embora não fosse eu a procurá-lo.
Estava já sentado no carro, de portas fechadas, chave metida na ignição, mas sem vontade de sair dali. Passado algum tempo, que me pareceu serem horas, levei a mão ao pescoço, porque algo me incomodava, palpando vários pontos e notei na região sub-maxilar direita um caroço duro, que não se movia, era fixo o que me preocupou logo. Nem preciso dizê-lo: depois dessa palpação, veio o receio e o medo, a coisa que nunca imaginara vir a ter naquela região.
As nossas vidas assentam e prefiguram-se em tantas coisas, que no dia a dia nem damos por isso, vamos vivendo, andando com o correr do tempo e pensando apenas no que mais nos interessa. Mas quando desconfiamos que tudo isso se vai alterar, ficamos então diferentes, deprimidos, sem as alegrias que tínhamos e sem sabermos o que será o futuro.
Quantas vezes pensei como poderia vir a morrer de cancro deste ou daquele órgão, mas nunca pus a hipótese de ter qualquer doença maligna na boca.
Com a boca comia, bebia, falava e contava as minhas histórias, cómicas muitas vezes, percebendo-me toda a gente. Mais tarde vi e senti na minha própria carne, que muitas vezes as pessoas não entendiam as minhas histórias, as minhas anedotas, que sempre gostei de contar, e isso custava-me muito. Havia por vezes, o pedido de repetição do que dizia, que me levava a pensar que esses outros eram surdos. Mas não, era a minha dificuldade de articular as palavras, muitas vezes confusas, entendidas como outras, porque tinha a minha língua presa ao pavimento da boca depois de ter sido operado. Não. E era aquela tristeza que se apoderava de mim, porque, julgava, “já nem falar consegues….”.
Daí em diante, tudo na minha vida me chamaria à luta, para vencer as dificuldades físicas e psíquicas que se me impunham, mas que eu teria de contornar e até, melhor dizendo, enfrentar para continuar a sentir-me quem era, e não cair num estado depressivo que me levaria à derrota física e, inevitavelmente, a morrer mais cedo.
Meio ensonado pela noite que tivera, recomecei o dia como se nada me tivesse acontecido, ou incomodado, voltando às minhas actividades normais.
Estou a tentar enganar-me a mim mesmo; ao espelho voltei a palpar o caroço debaixo do meu queixo, a observar o seu aspecto, a preocupar-me em saber o que era e a odiá-lo, porque me atormentava, tornando o meu dia em noite escura, com uma ansiedade terrível de saber “de que era feito”.
Até ir à consulta, da parte de tarde, tudo me ocupava a mente: a incerteza, a escuridão, o que seria preciso fazer, os tratamentos que me iriam transformar num doente, num doente que eu não queria ser.
Mais tarde, já depois de terminados todos os tratamentos que fiz, quando já retomara as minhas actividades de médico, verifiquei que não era bem assim. Para os outros, que lidavam comigo, a aparência que agora tinha, com cicatrizes, voz diferente, era apenas uma das muitas inconveniências que eu deveria gerir. Daí, cresceu em mim uma vontade enorme de me afirmar, de deixar de ser aquela figura com cicatrizes na face, que os outros acreditavam que ia desaparecer em breve.
E foi então que, retomando toda a minha actividade médica que tivera, me fui libertando daquele estado depressivo, que me cortava a vida e toda a minha vivência. Assim, voltou a alegria de viver, a vontade de andar em frente para ter mais felicidade. Esta, nunca esquecerei, aparece, quando ganhamos alguma coisa, que no meu caso era agora a maior auto estima que possuía, a vontade de ver o dia seguinte e o entusiasmo que punha em tudo o que fazia.
Eu serei sempre o touro enfurecido, em que o olé nada me diz e seguirei em frente, de cabeça em cima, para que o forcado não me possa pegar. Quero ter a esperança de sair vencedor, não quero ser turista sem mapa, andar às voltas para sair. Não. Para mim é a morte que terá que trazer o mapa para me localizar, porque o meu norte é sempre o sul e o “leste nunca me seduziu”. Não. A morte vai encontrar-me - se o mundo continuar assim - metido num saguão, de cabelos brancos, já velhinho, sem poder andar, sentado numa poltrona bem confortável, abandonado, mas com um papel colado no fato, junto ao peito: “CUIDEM DESTE VELHINHO QUE É AMOROSO”. Alguém há-de levar-me e ouvir as minhas histórias e a minha história. Só depois de saberem o que fui, quem fui, o que pensei, como pensei, como queria o mundo, é que então uma luz negra se porá diante de mim e, olhando para o meu desprezo, me dirá: - anda, chegou a hora… e eu que não gosto de Bacalhau à Bráz, direi apenas: vamos, mas não me leves a comer o Bacalhau à Bráz.
¥*¥*¥*